sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Um quarto de século

Jornal do Brasil - Sociedade Aberta - Por Joaquim Levy*

No Brasil houve um esforço ao procurar deixar claro que certos direitos não são favores
Há 25 anos, o Brasil vivia a campanha pelas eleições diretas - Diretas Já. Era o governo Figueiredo, presidente que se notabilizou por sentenças intuitivas, mas nem sempre apreciadas.
Naqueles dias, indagado enquanto em viagem o que ele achava de haver 1 milhão de pessoas na rua, ele disse que talvez sendo jovem e estando no Brasil ele se tornasse o "milhão e 1".

Suas tiradas, apesar de menos frequentes do que a de alguns de seus sucessores, contrastavam com o rigor do seu antecessor. Imagine se o efeito até desconcertante que elas tinham, depois de um presidente que, mesmo não tendo títulos no estrangeiro, fazia parte da intelectualidade do Exército conhecida como a "Sorbonne".

Algumas delas certamente fariam a delícia de alguns manuais de relações externas contemporâneos, como a que explicava que "democracia é que nem laranja - tem de vários tipos: bahia, pera, etc". Felizmente, desta nem todo mundo achou graça.

Deixando o anedótico à parte, vale lembrar que, mal ou bem, aquele governo cumpriu sua principal promessa que era de "fazer deste país uma democracia", com contramarchas e, principalmente, com uma opção de estabelecer uma continuidade histórica, refletida na simpatia para com algumas lideranças civis anteriores ao período militar, e resistência a candidatos que representavam uma ruptura com certas tradições brasileiras, inclusive de fidalguia.Daquelas lideranças, na oposição ao governo militar, pode-se citar o senador Pedro Simon.

No campo econômico, aquele governo não foi tão feliz, pois enfrentou com dificuldade o segundo choque do petróleo e o grande aperto da política monetária americana, o qual quebrou a espinha dorsal da inflação dos anos 1970, mas fez a dívida externa do Brasil disparar e o preço das commodities despencar. A tentativa de ressuscitar algumas das façanhas do milagre brasileiro do começo dos anos 1970 fracassou, especialmente, quando se procurou estimular a demanda interna enquanto o resto do mundopisava no freio. O efeito devastador no mercado imobiliário, por exemplo, é sentido até hoje, com a desorganização do crédito e a inviabilização da construção para a baixa renda, que se traduziu em favelização no país inteiro.

A preferência pela conciliação e acomodação política que caracterizou aquela transição é para muitos essencialmente brasileira, e denota uma convivência dos opostos encarnada de maneira paradigmática em Carneiro Leão há mais de 150 anos.
Essa observação sobre processos de acomodação versus reformas mais estruturais, quase banal no Brasil, é feita com muita força em recente artigo de Malcolm Gladwell na revista The New Yorker, a respeito do significado e contexto em que se desenrola a famosa estória escrita em 1960 por Harper Lee, O sol é para todos (To kill a Mockingbird).

O referido ensaio examina a segregação racial "amável" existente no estado do Alabama sob o governo de James Folsom, e como ela se tornou insustentável após a integração forçada das escolas determinada pela Suprema Corte e implementada pelo presidente Eisenhower.
Esta mudança institucional resultou no curto prazo em um retrocesso, com a eleição de políticos mais segregacionistas, mas no longo prazo levou a uma transformação do status dos afrodescendentes americanos inimaginável meio século antes, inclusive com a eleição de Barak Obama.O livro mostra, pelos olhos da menina que conta a estória passada anos antes, como funciona a acomodação, e pelas perplexidades que ela experimenta, os seus limites.

No Brasil, houve um esforço desde a democratização, particularmente a partir do meado dos anos 90, de se construir uma nova institucionalidade, em que regras passassem a ter mais valor e, com isso, permitissem oportunidades maiores para mais pessoas, empresas e organizações.
Não necessariamente abandonando a conciliação como método ou procurando uma frigidez anglo-saxã, mas valorizando a impessoalidade e a consistência intertemporal nas ações de governo.E procurando, mesmo em iniciativas talvez canhestras, deixar claro que certos direitos não são favores.

Na área econômica, isso se traduziu na estabilidade dos preços, na responsabilidade fiscal e em mecanismos de incentivo à concorrência e à regulação de setores de capital intensivo, como petróleo, telecomunicações e serviços financeiros.Aos poucos, esta institucionalidade foi se implantando nas administrações estaduais, refletida principalmente na proeminência dada à gestão. A melhora da gestão é a única maneira de se poder universalizar com um mínimo de qualidade e durabilidade a provisão de serviços básicos como saúde, educação e segurança.

Ela segue na esteira da estabilidade econômica e da solidez fiscal, valores hoje crescentemente procurados pelos governos estaduais, e felizmente valorizados pelos eleitores. Esta é a estratégia do atual governo no Rio de Janeiro, onde alguns resultados da prioridade à gestão e foco na entrega de serviços básicos já começam a ser colhidos.
*Secretário de Fazenda do Estado do Rio de Janeiro

Nenhum comentário: