sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

"Cinquant'anni fa"

Folha de São Paulo - Publicado em 19/11/2009 - Por Joaquim Levy*

O Brasil continua sensível à economia mundial, apesar das vantagens do câmbio flutuante e da relativa diversidade da sua indústria
TIPICAMENTE , quando há uma crise nos países desenvolvidos, a queda dos preços dos produtos ao consumidor, em resposta à contração da demanda interna, é lenta, enquanto a das matérias-primas se antecipa, diminuindo abruptamente a entrada de divisas nos países exportadores desses produtos. Isso torna estes países sensíveis à economia mundial, especialmente quando eles são mais monetizados.

Aí, para cada unidade de divisa que entra no país, a renda total sobe bem mais que unitariamente e se distribui por diversos setores demandantes de bens importados. Nesse caso, há uma inércia nas importações, mesmo quando a receita para as satisfazer já desapareceu.O problema se agrava quando, em face da crise, o país desenvolvido lança mão dos fundos de que dispõe, inclusive no exterior.
A contração da liquidez mundial que se segue dificulta o financiamento das importações do país exportador, o qual, além disso, enfrenta uma conta de serviços rígida, se os fundos estrangeiros que recebeu forem empréstimos ou inversões com garantia de juros.

Reservas internacionais podem dar um fôlego, mas, como elas são caras de manter, em geral, não são muito grandes. O ajuste externo acaba, então, se dando pelo câmbio, que reduz o poder de compra dos consumidores e a demanda por importados, canalizando recursos para o exportador. Em países em que o capital é escasso, mas outros fatores, como terra e trabalho, são abundantes, esse ciclo tem ainda um caráter particular.Na fase boa, o detentor do capital prefere ampliar a escala da produção, em vez da eficiência, já que pode expandi-la contratando mais trabalhadores sem aumentar salários.

Quando a maré vira, o dilema está entre diminuir a renda do trabalhador, mantendo a lucratividade do setor exportador para preservar o PIB e a geração de divisas, ou proteger os setores domésticos, estrangulando o balanço de pagamentos e a produção. Como a segunda opção não é sustentável, em geral o ajuste decorrente da primeira é inevitável.Ao longo do século passado, grupos de pressão, em geral urbanos, muitas vezes tentaram postergar as etapas mais dolorosas desse ajuste. Essa é também a raiz da resistência às "políticas do FMI", associadas à perda do poder aquisitivo do trabalhador e à desvalorização do câmbio, mesmo quando há algum suporte financeiro externo para honrar a conta de juros.

Nada disso é novidade. Os parágrafos acima resumem os capítulos 27 e 28 do livro "Formação Econômica do Brasil", que Celso Furtado publicou em 1959, e parafraseiam a interpretação de por que o desenvolvimento urbano e a ampliação do crédito na República aumentaram as resistências ao processo de ajuste característico do império, gerando continuadas crises a cada vez que o preço das matérias-primas caía. Até que, na década de 1930, a economia se fechou, parecendo temporariamente imune a esses problemas.
Qual a relevância dessas observações? É que, assim como Greenspan e Bush não revogaram o ciclo econômico, mas apenas lhe deram mais combustível, o Brasil continua sensível à economia mundial, apesar do bom momento que vive, das vantagens do câmbio flutuante a da relativa diversidade da sua indústria.

Às vezes não tem ficado claro em análises da crise que os preços das matérias-primas não caíram tanto recentemente porque uma tremenda injeção de liquidez nos países desenvolvidos amorteceu a expectativa de queda no consumo e a China continua comprando, sob influência de um estímulo fiscal de mais de 5% do PIB.

O dinheiro público para salvar os bancos também significou que aquele esforço dos países centrais de lançar mão dos fundos no exterior não foi necessário, o que explica parte dos recentes fluxos de capital para o Brasil.O problema é que, em 2010 ou 2011, os países mais ricos terão que começar a sua consolidação fiscal. A tendência será de maior ajuste no preço das matérias-primas, porque a sustentação ao consumo diminuirá, e de contração dos fluxos de capital, porque o dinheiro lá ficará escasso. Esse é um cenário mais parecido com o da década de 1990 ou daquele tradicional descrito por Celso Furtado.

Mesmo que a consolidação se dê com a economia mundial crescendo (e preços mais robustos), os fluxos de capital para o Brasil podem se contrair, porque haverá mais possibilidades de investimentos no mundo.É por isso que muitos -mesmo que não se impressionem com a resenha do padrão ouro e a reflexão de Celso Furtado- insistem que, além de eventuais barreiras ao fluxo de capitais, é fundamental o Brasil usar a política fiscal para não pressionar excessivamente o câmbio e os juros e investir no aumento da produtividade.

Há motivos para expandir o PIB e o emprego, mas, sem ser timorato, deve-se ter cuidado para que o custo de um eventual ajuste externo -mesmo com as reservas existentes- não seja desnecessariamente exacerbado pela aceleração exagerada da atividade econômica e do gasto público neste momento favorável ao Brasil.
*Formado em engenharia naval, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é o secretário da Fazenda do Estado do Rio de Janeiro. Foi secretário do Tesouro Nacional (no primeiro mandato de Lula) e vice-presidente de Finanças e Administração do BID.

Um quarto de século

Jornal do Brasil - Sociedade Aberta - Por Joaquim Levy*

No Brasil houve um esforço ao procurar deixar claro que certos direitos não são favores
Há 25 anos, o Brasil vivia a campanha pelas eleições diretas - Diretas Já. Era o governo Figueiredo, presidente que se notabilizou por sentenças intuitivas, mas nem sempre apreciadas.
Naqueles dias, indagado enquanto em viagem o que ele achava de haver 1 milhão de pessoas na rua, ele disse que talvez sendo jovem e estando no Brasil ele se tornasse o "milhão e 1".

Suas tiradas, apesar de menos frequentes do que a de alguns de seus sucessores, contrastavam com o rigor do seu antecessor. Imagine se o efeito até desconcertante que elas tinham, depois de um presidente que, mesmo não tendo títulos no estrangeiro, fazia parte da intelectualidade do Exército conhecida como a "Sorbonne".

Algumas delas certamente fariam a delícia de alguns manuais de relações externas contemporâneos, como a que explicava que "democracia é que nem laranja - tem de vários tipos: bahia, pera, etc". Felizmente, desta nem todo mundo achou graça.

Deixando o anedótico à parte, vale lembrar que, mal ou bem, aquele governo cumpriu sua principal promessa que era de "fazer deste país uma democracia", com contramarchas e, principalmente, com uma opção de estabelecer uma continuidade histórica, refletida na simpatia para com algumas lideranças civis anteriores ao período militar, e resistência a candidatos que representavam uma ruptura com certas tradições brasileiras, inclusive de fidalguia.Daquelas lideranças, na oposição ao governo militar, pode-se citar o senador Pedro Simon.

No campo econômico, aquele governo não foi tão feliz, pois enfrentou com dificuldade o segundo choque do petróleo e o grande aperto da política monetária americana, o qual quebrou a espinha dorsal da inflação dos anos 1970, mas fez a dívida externa do Brasil disparar e o preço das commodities despencar. A tentativa de ressuscitar algumas das façanhas do milagre brasileiro do começo dos anos 1970 fracassou, especialmente, quando se procurou estimular a demanda interna enquanto o resto do mundopisava no freio. O efeito devastador no mercado imobiliário, por exemplo, é sentido até hoje, com a desorganização do crédito e a inviabilização da construção para a baixa renda, que se traduziu em favelização no país inteiro.

A preferência pela conciliação e acomodação política que caracterizou aquela transição é para muitos essencialmente brasileira, e denota uma convivência dos opostos encarnada de maneira paradigmática em Carneiro Leão há mais de 150 anos.
Essa observação sobre processos de acomodação versus reformas mais estruturais, quase banal no Brasil, é feita com muita força em recente artigo de Malcolm Gladwell na revista The New Yorker, a respeito do significado e contexto em que se desenrola a famosa estória escrita em 1960 por Harper Lee, O sol é para todos (To kill a Mockingbird).

O referido ensaio examina a segregação racial "amável" existente no estado do Alabama sob o governo de James Folsom, e como ela se tornou insustentável após a integração forçada das escolas determinada pela Suprema Corte e implementada pelo presidente Eisenhower.
Esta mudança institucional resultou no curto prazo em um retrocesso, com a eleição de políticos mais segregacionistas, mas no longo prazo levou a uma transformação do status dos afrodescendentes americanos inimaginável meio século antes, inclusive com a eleição de Barak Obama.O livro mostra, pelos olhos da menina que conta a estória passada anos antes, como funciona a acomodação, e pelas perplexidades que ela experimenta, os seus limites.

No Brasil, houve um esforço desde a democratização, particularmente a partir do meado dos anos 90, de se construir uma nova institucionalidade, em que regras passassem a ter mais valor e, com isso, permitissem oportunidades maiores para mais pessoas, empresas e organizações.
Não necessariamente abandonando a conciliação como método ou procurando uma frigidez anglo-saxã, mas valorizando a impessoalidade e a consistência intertemporal nas ações de governo.E procurando, mesmo em iniciativas talvez canhestras, deixar claro que certos direitos não são favores.

Na área econômica, isso se traduziu na estabilidade dos preços, na responsabilidade fiscal e em mecanismos de incentivo à concorrência e à regulação de setores de capital intensivo, como petróleo, telecomunicações e serviços financeiros.Aos poucos, esta institucionalidade foi se implantando nas administrações estaduais, refletida principalmente na proeminência dada à gestão. A melhora da gestão é a única maneira de se poder universalizar com um mínimo de qualidade e durabilidade a provisão de serviços básicos como saúde, educação e segurança.

Ela segue na esteira da estabilidade econômica e da solidez fiscal, valores hoje crescentemente procurados pelos governos estaduais, e felizmente valorizados pelos eleitores. Esta é a estratégia do atual governo no Rio de Janeiro, onde alguns resultados da prioridade à gestão e foco na entrega de serviços básicos já começam a ser colhidos.
*Secretário de Fazenda do Estado do Rio de Janeiro